Nos últimos anos, nomes como Red Pill, Black Pill e incel saíram do Reddit e Discord e começaram a pipocar no TikTok, YouTube, Twitter. Aqui no Brasil, eles ficaram populares falando sobre beber campari e como o homem não se deve curvar aos desejos de uma mulher que lhe propõe beber cerveja. Na gringa, influenciadores passaram a falar de “mercado sexual”, “hipergamia feminina”, “valor de mercado sexual” e outras expressões que mais parecem saídas direto de uma aula de economia do que diálogos sobre afeto e intimidade.
Parece ficção? Pois esse enredo é muito mais real (e comum) do que parece. E é sobre ele que vamos falar aqui.
O que é Red Pill?
Na estética Red Pill — termo inspirado em Matrix — “tomar a pílula vermelha” significa despertar para uma suposta “verdade” sobre o comportamento feminino. A ideia central é que:
- Mulheres são hipergâmicas (só se atraem por homens de alto valor)
- O “mercado sexual” é injusto para homens comuns
- O feminismo bagunçou os papéis de gênero e desvalorizou os homens
- Só os “alfa” vencem: bonitos, ricos, dominantes
Esse conteúdo vem disfarçado de autoconhecimento masculino, mas se baseia em lógica de mercado, hierarquias e muita hostilidade disfarçada de “realismo”.
Princípio 80/20: o que isso significa?
Dentro da lógica Red Pill, o Princípio 80/20 (inspirado no Princípio de Pareto) é traduzido assim: “80% das mulheres competem pelos 20% dos homens mais atraentes.”
É uma forma de explicar por que, segundo eles, a maioria dos homens está “invisível” no mercado afetivo e sexual. A leitura é: ou você é o 20%, ou vai sofrer. Isso incentiva a busca por um modelo masculino de alta performance — onde o corpo, o dinheiro e a frieza emocional são moeda de troca.
SMV – Valor de Mercado Sexual
Outra expressão-chave nesse universo é o SMV (Sexual Market Value) — o “valor de mercado sexual”. Sim, a intimidade vira planilha.
Para eles, homens e mulheres têm valor baseado em:
- Homens: status, beleza, musculatura, renda, confiança
- Mulheres: juventude, beleza, “pureza”, comportamento
A ideia de “valor” é tão fria quanto excludente. Ignora afeto, cuidado, história, desejo genuíno. E transforma relações em uma disputa por poder e validação.
Black Pill, incels e o fundo do poço
Se a Red Pill ainda flerta com o sucesso (mesmo que tóxico), a Black Pill mergulha no desespero. A lógica aqui é fatalista: “Se você não nasceu bonito, está condenado.”
Homens que seguem essa ideologia acreditam que não há nada a fazer: genética e aparência definem tudo. É daí que surgem muitos incels (celibatários involuntários) — garotos que se veem fora do jogo afetivo e sexual, e muitas vezes transformam essa frustração em ódio contra as mulheres, os “chads” (homens atraentes), ou até si mesmos.
Mas o que o feminismo tem a ver com isso?
Na visão desses grupos, o feminismo é o grande vilão:
- Teria “empoderado demais” as mulheres
- Tornado elas mais exigentes
- E “tirado dos homens” sua autoridade natural
Mas aqui vai o ponto central: o que eles chamam de “crise da masculinidade” é, na real, a queda de um modelo ultrapassado — onde ser homem significava nunca demonstrar afeto, ser provedor a qualquer custo, reprimir desejos, engolir o choro e mandar na relação.
Essa masculinidade tóxica não é ruim só pras mulheres. Ela adoece os próprios homens.
Os dados que ninguém mostra nos vídeos de coach
- 81% dos homens dizem ter dificuldade de falar sobre sentimentos com amigos (Movember, 2020)
- A solidão masculina é um dos principais fatores de risco pra depressão e suicídio (OMS)
- 70% dos jovens que consomem conteúdo Red Pill têm entre 15 e 30 anos (YouGov, 2023)
- Fóruns incel cresceram 300% entre 2019 e 2022 (MIT Review)
Precisamos de novos caminhos
A série Adolescência mostra, com delicadeza, como tudo isso se instala: o medo do fracasso, a carência de afeto, a obsessão por controle, o desejo de ser amado sem saber como pedir isso.
Esses garotos não são monstros — eles estão sendo engolidos por um sistema que vende dureza como solução pra dor.
O que falta é espaço pra conversa, acolhimento, educação sexual real, afetividade sem vergonha. Falta permissão pra ser vulnerável, pra chorar, pra se entender sendo homem de outros jeitos. Falta quebrar o espelho onde só se enxerga valor se for “o melhor” e “o dominante”.
E se a gente começasse a olhar pra masculinidade como algo que também pode ser ressignificado?
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